quinta-feira, 14 de abril de 2011

passado - presente -> futuro

Folheando edições antigas do Jornal do Brasil, encontrei este texto falando sobre a relação que temos com o passado e o presente.
O texto foi publicado originalmente no Jornal do Brasil, no Suplemento Dominical,  na edição de 13 e 14 de Fevereiro de 1960, escrito por Willem Sandberg, diretor do Stedelijk Museum de Amsterdã,  com tradução de Nelson Coelho, e curiosamente sem título.

"Vivemos na metade do século XX
mas será que vivemos?
vivemos no século do automóvel, avião, sputnik, televisão,
mas ao mesmo tempo gostamos de descansar na cadeira da vovó
atrás de cortinas drapeadas de veludo
sob a luz difusa de um abajur

apreciamos a beleza antiga de nossas cidades
e ao mesmo tempo destruimos essa atmosfera calma
com nossos carros espetaculares

para onde vamos?
vamos adaptar nossas cidades ao passado?
ou ao futuro?

Vivemos na época do átomo
as últimas descobertas científicas trarão terror ou bem estar
tensão e preocupação como resultado desse problema marcam nossa vida
podemos tentar escapar da realidade do mundo fugindo para o passado
mas podemos também tentar descobrir o presente
tentar penetrar dentro para compreendê-lo
o futuro começa agora, vamos participar dele?

arte pode ser nosso elo com o presente
qual é então a função do artista
embelezar a vida?
inspirar-nos com pensamentos elevados
de modo a tornar suportável à vida diária?
ou
com todos os seus sentidos olhar para a frente
na direção do que vem vindo
muito antes de nós pessoas práticas
sermos capazes de percebê-lo
ir para onde a vida é menos intensa
onde novas formas de relações humanas estão prontas para surgir
e criar fisionomia própria

porque há duas espécies de artistas
uma espécie onde seu trabalho segue a tradição
estes são inspirados pela obra de grandes predecessores
e formam uma escola
eles se esforçam em fazer arte

mas somente produzem pinturas e esculturas
os outros às vezes estudam a técnica de seus predecessores
mas reformam-na
tentam criar a forma do que está surgindo
eles são a vanguarda, não falam sobre arte
mas trazem uma mensagem
seus trabalhos abrem nossos olhos
o primeiro grupo nos acalma
o público admira suas obras imediatamente
os críticos se entusiasmam
e o esquece

os outros chocam nossos sentimentos
perdem nosso interesse, estimulam-nos
ou simplesmente nos espantam
e as gerações futuras irão apreciá-los
usando termos como "genial" e belo

a história da arte escreve apenas sobre este grupo
mas só depois de sua morte
irão chamá-los de grandes artistas

grandes artistas sempre fazem experiências no começo
grandes artistas estão vivendo agora
são capazes de nos apresentar ao presente
e preparar-nos para o futuro
mas onde encontrá-los
em museus?

museus mostram desenvolvimento
mostram ordem cronológica
"museus de arte moderna" perdem logo a atualidade
tem de nos oferecer o que é mais indigesto:
o passado recente
nenhum estilo envelheceu tão depressa como o "art nouveau"
museus tem uma tendência para conservadorismo
um museu não é a chave certa
para nos abrir a porta deste século XX

vamos tentar criar ambiente
onde a vanguarda sinta-se em casa
amplos
claros
em escala humana
sem grandes "halls", escadas suntuosas, lustres

portas lembrando portões, empregados uniformizados
mas um lugar onde as pessoas se atrevem a falar, rir
e serem elas mesmas
um verdadeiro centro para a vida atual
generoso
elástico
casa de música, casa também para fotografia
pintura e escultura, para dança e cinema
para experiências

e para tudo que possa iluminar os traços
do rosto de nossa época
e para todas as contribuições às formas do presente
o lugar certo
a inteira renascença do século XX
cubismo, futurismo, suprematismo, construtivismo e o "stijl"
mas especialmente aquilo que vem depoios
música de Stravinsky até Varèse
cinema mudo e "La Strada"
cadeiras de Bauhaus e de Eames
................
e ao mesmo tempo fragmentos de civilizações distantes
que se conservaram jovens
escudos australianos
esculturas da Nova Guiné e das cicladas
"spirituals" e Bach
todo material de hoje
apto a construir o futuro

um lugar de hoje
onde o futuro sinta-se em casa
sem residir
senão logo se tornará novamente museu
o que exibe é emprestado
emprestado de outras instituições, coleções etnológicas
com aluguel pago
e quando o objeto perde a atualidade
os museus aceitam-no com prazer

entremos neste nosso século XX
agora
integração com o passado = morte lenta
com o futuro = vida"


Imagino que a intenção do texto é discutir a forma como os museus se relacionam com a arte atual, contemporânea, mas também vejo como um modo de encarar o nosso cotidiano, o espaço em que vivemos, nossas cidades, nossas casas.
Sou apaixonado pelo passado, principalmente pelos esquecidos e menosprezados, pelas mais simples manifestações cotidianas que somem com o passar do tempo e que ficam perdidas em nossas memórias ou em páginas de jornais. E como me senti ao ler este texto de 1960?
Pensei na necessidade da "ancoragem", das referências, na mudança incontrolável e constante de São Paulo, nos esquecidos. E vi traços de 'futuro' nisso tudo, vi uma relação entre ecologia e memória.
Tudo bem que não dá para seu filho brincar na rua com uma pipa. Mas será que ensinar o seu filho a fazer uma pipa só serve para isso? ou é melhor ainda a televisão ensinar como se faz? Se é que ele vai fazer alguma coisa além de assistir TV.
Realmente aquelas taças de cristal do enxoval da sua avó são lindas, mas por isso elas não devem ser usadas? Sim, elas quebram, mas e daí? as lembranças que você tem da sua avó vão junto? Se bobear ela também não usava para não quebrar. 
E aquela pilha de jornal velho que você acho no armário do seu avô? "Porque ele guardava tamanha tranqueira?" Pois é, trancada ali, órfã, a pilha de jornal não era nada além disso, mas na mão de um estudioso ou de um curioso ele volta a viver. E nem todo papel tem que ser reciclado.
É lógico que estou falando das coisas sem um valor monetário muito claro (porque tudo tem seu valor se for negociado no mercado certo) e que também estão vazias de valor sentimental verdadeiros. Porque você pode ter uma xícara que foi da sua avó e nunca olhar para a xícara e lembrar que foi dela. 
E a questão sentimental é o que realmente me importa, porque valorizo mais a almofada de retalhos que acompanhei minha avó fazendo nas noites de domingo assistindo o Programa do Silvio Santos, do que qualquer outra coisa que ela teve, porque, como me disse uma prima certa vez, "o tesouro dela eram os retalhinhos!".
***
Não digo que o que faço é o 'certo', e nem tenho a intenção de esgotar a questão. 

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